terça-feira, maio 16, 2017

 

Forum por um futuro solidário


 

Treze de Maio, uma aparição abandonada em S. João da Folhada



Em tempos chamavam-lhe Senhora da Lapa, mas, agora, chamam-lhe Senhora da Aparecida. A lapa era um grande penedo no vocabulário da gente da Folhada. Mas também pode significar um enorme pesadelo que faz do dia-a-dia um tormento, ameaçando pelo medo o sentido da existência.

As aparições têm sempre a ver com respostas a dramas existenciais. São visões que incorporam a realização de um desejo gerado pelo imaginário colectivo. Precisamos de uma divindade, quando os demónios andam à solta.

Foi isso que aconteceu em S. João da Folhada no dia 13 de Maio de 1757. Nas fraldas da Serra da Aboboreira, nos limites da freguesia de S. João da Folhada com Várzea de Ovelha, apareceu Nossa Senhora a três pastorinhas.
A  memória colectiva nunca esqueceu esta aparição, como testemunha a muito antiga capela  construída sobre o bojo do penedo, onde Nossa Senhora apareceu. Foi só preciso que um manuscrito esquecido na Torre do Tombo viesse dar vida a um abandonado santuário. 

Nesse manuscrito, conforme é divulgado na obra “As Freguesias do Distrito do Porto nas Memórias Paroquiais de 1758”, afirma o, então, Abade de S. João da Folhada, José Franco Bravo:

 Nos limites desta Freguesia, quase nos seus confins, do lado poente e sul a confinar com a Freguesia de Várzea de Ovelha, nas fraldas dos grossos e ásperos matos da serra da Aboboreira, na parte do Sul, num cabeço do dito monte, no dia 13 de Maio de 1757, quase uma hora antes do pôr do Sol, andando três criaturas de idade menor, de menos de 12 anos, apascentando umas ovelhas no tal sítio chamado o Outeiro do Preiro, sem que nada vissem, ouviram uma voz que as chamava, cada qual pelo seu nome. Duas chamavam-se Maria e uma Tereza. Ao virarem o rosto, viram sobre umas ásperas pedras uma mulher encostada às altas fragas, de mediana estatura, mas de tão brilhante e resplandecente rosto que ficaram admiradas e logo lhes pareceu não ser mulher desta terra. Aproximando-se dela, ainda que um tanto surpreendidas de verem tal mulher e em tal sítio, foram por ela acolhidas com afagos, convidando-as a aproximarem-se. Entretanto, advertiu-as que deveriam saudá-la. Pegou na mão de uma, a que tinha ar de mais inocente, e á outra, retirou-lhe um rosário que trazia ao pescoço e lançou-o ao céu, enquanto com elas falava. À terceira, que era mais adulta, repreendeu-a do vício de falar do demónio. A todas disse que, chegando aos locais onde residiam a todos pedissem que jejuassem a pão e água nas primeiras Sextas-Feiras e Sábados. E que o mesmo pedido fosse feito a toda a gente que encontrassem ou com elas falasse. Uma das crianças, a mais faladora, perguntou-lhe quem era. Respondeu-lhe que depois de cumprirem o que lhes pedira e de fazerem uma romaria durante nove dias contínuos ao redor daqueles penedos em louvor de Nossa Senhora lhes diria quem era. E as três meninas cumpriram o que lhes foi pedido. E mal deram a notícia, apareceu logo muitas pessoas, umas de perto, outras de longe, e todas consideraram que o acontecimento era um milagre.”

E o Abade da Folhada, continuou: O que eu vi e observei, dei conhecimento ao mui Reverendíssimo Doutor Provisor deste bispado e pedi-lhe que mandasse averiguar o caso judicialmente. O referido senhor ordenou que fosse eu a observá-lo com prudência e que nada fosse desprezado. E empenhando-me a averiguar o melhor que pude e a colher o que os outros diziam, não encontrei, até ao presente, ninguém que contrariasse o que foi dito. Pelo contrário, encontrei pessoas muito fidedignas que me disseram ser um milagre, quando de noite, algum tempo atrás, se viu uma luz, no tal sítio, na véspera da Ascensão de Nossa Senhora de Agosto. Essa luz, que apareceu quase à meia-noite, era tão resplandecente que asseguram se podia ler uma carta à sua claridade à distância de quase meia légua. Nunca se tinha observado tanta luz. Além deste e outros testemunhos que recolhi, verifico que desde o ano passado ocorrem alguns milagres e o maior é a multidão de gente que continuamente ocorre para aquele sítio. Por consideração com o culto e devoção dessa gente, mandei colocar naquele sítio uma estampa de Nossa Senhora da Lapa e uma cruz de pau.”
O caso terá posto em sobressalto toda a gente da Folhada e das paróquias vizinhas. A partir de 13 de Maio de 1757, sob a inclemência do tempo, multidões acorriam à lapa do Outeiro do Preiro, vindos de diferentes partes da região, orando e fazendo penitência.  Acreditavam que aquelas três meninas da Folhada, filhas de gente muito pobre,  souberam acolher a mensagem que só do Céu, de Nossa Senhora, podia aliviar o pesadelo que afligia as suas vidas e abrir horizontes de um mundo melhor.

Para essa multidão de devotos, as circunstâncias dessa Aparição não poderiam ter maior significado: eram pobres e sentiam que, no mundo em que viviam, só Nossa Senhora os poderia salvar do abandono a que estavam votados, aliviar do pavor a sua vida e protegê-la da fúria das políticas do Marquês do Pombal.
No íntimo de cada peregrino, talvez existisse a convicção de que Nossa Senhora havia escolhido aquela enorme lapa para aparecer às três pastorinhas por ser a metáfora perfeita da dimensão do pesadelo que lhes esmagava o coração.

Por isso, cada peregrino regressava mais feliz a sua casa e nas terras por onde passava, ao descrever a felicidade que trazia, atraía mais peregrinações ao Outeiro do Preiro. Todos confiavam que Nossa Senhora lhes abrisse um rumo de vida diferente e essa crença alimentava as vantagens do sacrifício que faziam.
É nesta circunstância que o sagrado (Nossa Senhora) irrompe no profano para desobstruir o absurdo do mundo sem sentido e criar esperança num mundo melhor.

Mas esta hierofania não pode acontecer em mentes complicadas, que não são capazes de ”re-ligar”, unir pelo interior de si mesmo, o humano ao divino, o sagrado ao profano. Precisa de almas descontaminadas pelos preconceitos mundanos, almas puras que não complicam o que há de mais belo na vida do espírito: a contemplação do próprio espírito configurado numa divindade, seja  Nossa Senhora ou outra.

Há muitos pontos de encontro entre a aparição de Nossa Senhora da Lapa, em 1757, e a aparição de Nossa Senhora, em 1917, na Cova da Iria.


A Senhora da Lapa apareceu dois anos depois de catástrofe provocada pelo Terramoto de Lisboa que destruiu grande parte da Cidade,  deu origem a um devastador incêndio causado pelas velas que nesse dia, dia de todos os santos, estavam acesas nas igrejas de Lisboa, provocou milhares de mortos, criou o pânico e gerou medos na vida do povo. Em S. João da Folhada a torre-solar da Quinta do Vinhal desmoronou-se.

A dimensão dessa catástrofe foi tanta que dela houve notícia em toda a Europa, causando perplexidades e provocando um grande debate filosófico, científico e religioso sobre as suas causas e as suas repercussões. Até o Filósofo Kant escreveu sobre o assunto. E foi, nessa altura, que apareceu a sismologia.

Para a gente amedrontada da Folhada o Terramoto só poderia ser um castigo divino. E isso não poderia ser dito, porque contrariava a vontade do Marquês do Pombal. Todos os que assim julgassem eram atirados para as prisões e ficavam aí esquecidos até que a morte os levasse.

Mas, a verdade é que, depois da Restauração de Portugal, à luz dos ensinamentos cristãos, nunca teria havido tantos pecados como os cometidos pela luxúria de D. João V, pela vida depravada do seu filho, D. José, e, agora, pela húbris do seu secretário, Sebastião José de Carvalho e Mello, que não olhava a meios para assegurar as suas desmedidas ambições.

E vinha à memória da gente da Folhada o que contara o recoveiro a quem se confiava as mercadorias que iam ou vinham do Porto. Dera notícia de acontecimentos horrorosos que, logo a seguir, eram confirmados por familiares de taberneiros da cidade do Porto. O que tinha acontecido era terrível!... Quando, no Porto, em 23 de Fevereiro de 1757, os taberneiros e pequenos agricultores fizeram repenicar os sinos da Sé e da Misericórdia para anunciar a sua revolta contra o monopólio dos vinhos, José de Carvalho e Mello esmagou o motim com a ocupação militar da Cidade, a decapitação dos revoltosos, açoites, galés e confiscação de bens a outros envolvidos.  Diabolizou os jesuítas e os Távoras, acusando-os de serem os instigadores do tumulto. E não lhe bastando toda esta crueldade, criou um imposto só para os portuenses para serem eles a pagar os custos com as tropas que vieram de Aveiro para esmagar no Porto o motim.
Em 1917 também se vivia um contexto de pavor semelhante. Depois de oito séculos em que a Igreja católica era a religião oficial do Estado, a República não se limitava a ser laica como parecia hostilizar a religião católica. Apareceu a Carbonária que, perseguindo e enxovalhando padres, freiras e frades, criava o terror nas manifestações religiosas.
A separação radical entre o poder civil e o poder religioso dividia ao meio a gente simples do povo.

Somava-se a tudo isto os dramas que, desde 1914, a Primeira Grande Guerra causava em todas as famílias e os receios que iam surgindo de que uma Revolução na Rússia pudesse soltar ainda mais demónios.
O mundo da vida dos crentes estava dominado pelo pavor. Precisavam que o mundo do espírito lhes abrisse um sentido para a existência.

É neste contexto, muito semelhante ao vivido no séc. XVIII, que Nossa Senhora aparece na Cova da Iria, em Fátima, também a três pastorinhos.

Nas imanências mais dolorosas há sempre a procura da transcendência. Mas não é esse “re-ligare” que constitui a própria natureza da religião?

E sendo, assim, perguntamos: Por que Fátima ganhou o esplendor que falta à capelinha da Senhora da Lapa, sendo as circunstâncias semelhantes?!...
Talvez à Igreja do tempo de Salazar conviesse o que não convinha à do tempo do Marquês do Pombal. Mas não é a conveniência dos governantes, das ideologias ou mesmo das instituições que podem desvalorizar o que um dia terá dito Dostoiévski: “Precisamos de Deus, quando a vida está submetida aos impulsos dos demónios.”

É do transcendente que se trata e não da instituição que o representa. Parece que é isto que o Papa Francisco quer dizer, quando diz que vem a Fátima como peregrino e não como Chefe da Igreja.
Ainda bem que temos um Papa que vem de um outro mundo!!!

Maio 2017

João Baptista Magalhães

Obs: no próximo texto escreverei sobre a Quinta do Burgo no caminho de José Policarpo de Azevedo, acusado pelo Marquês de tentativa de regicídio.

terça-feira, maio 02, 2017

 

O abade de Jazente e a Senhora da Lapa

 .
Contexto da aparição de Nossa Senhora, no dia 13 de maio de 1758, em S. João da folhada

Por essa altura, segunda metade do séc. XVIII, era abade de Jazente, uma freguesia vizinha de S. João da Folhada, Paulino António Cabral de Vasconcelos. O Abade de Jazente, nome pelo qual ficou conhecido, fartava-se de percorrer a encosta do cabeço do Outeiro do Preiro, na Serra da Aboboreira, onde se dizia que Nossa Senhora tinha aparecido, em 13 de Maio de 1758, num enorme penedo, a três pastorinhas que ali guardavam umas ovelhas.

Por ali, o Abade costumava esquecer-se das horas no afã venatório que tanto gozo lhe dava. Gostava, sobretudo, de ver os seus cães a farejar nos trilhos que, entre o denso mato, os coelhos e as perdizes usavam para passar. Era na caça e na pesca que sentia o forte apego por esta terra, enquanto esperava pelos fins-de-semana para ir até ao Porto. Aqui tinha lugar cativo nos salões da aristocracia e da alta burguesia. O Pai, que exercia no Porto a medicina cirúrgica, e o irmão, Manuel, um temido magistrado do Santo Ofício, tinham-lhe, desde muito novo, aberto as portas dessa vida mundana. A partir das quintas-feiras, depois das suas funções sacerdotais, em Jazente ou na Lomba, onde nascera a 6 de maio de 1719, na Quinta do Reguengo, já estava de malas aviadas para tomar a diligência que, de Amarante, o levaria à Rua Chã, no Porto, onde residiam os seus pais.

Mas não era a casa paterna que levava na mente: tinha um programa à sua espera nesses salões de amplas dimensões, faustosamente decorados e mobilados, que davam dignidade aos palácios e às instituições culturais, como as arcádias. Aí ficava o centro da vida social, cultural e artística frequentada por fidalgos e burguesia endinheirada. Conheceu aí o negociante e influente político biscainho Bartolomeu de Pancorvo (um dos fundadores da Companhia de Agricultura e Vinhos do Alto Douro). 

Participava nas atividades da Arcádia Portuense, onde era apreciado pela sua veia poética (que, por vezes, se antecipava no erotismo à de Bocage) e nos convívios dançantes promovidos pela alta aristocracia. Gostava de trocar sorrisos e galanteios com as muitas damas que por ali se esmeravam nas gentilezas femininas, sempre prontas para com ele dançar ou jogar as cartas, o que era moda naquele tempo.

Isso carregava a sua imaginação, delineando estratégias que satisfizessem respostas para as espectativas luxuriantes que de convívio em convívio ia alimentando e que acabava sempre por concretizar. O ambiente era propício aos calores das paixões: os desenhos dos passos de dança matizados pelos reflexos das luzes dos grandes espelhos, rivalizavam com os quadros a óleo, cheios de sensualidade, dos discípulos de Fragonard, que ornamentavam as paredes dos salões que frequentava; os sorrisos sedutores que as damas decotadas e de cintilantes joias lhe devolviam; o murmúrio aprovativo que, no último baile, ouvira de uma das mais belas damas:


- “Que bem que o Padre Paulino dança! Que passos perfeitos! Que elegância e leveza!”

O Abade de Jazente sabia cultivar a sedução e aproveitava sabiamente os privilégios com que a natureza o favoreceu: era alto, bem constituído, de lábios grossos, um lascivo olhar e um insinuante sorriso que prendia num mundo de ansiosos desejos as damas e as donzelas. Depois, aperaltava-se sempre com o rigor da moda que vinha de França: usava peruca com cachos cobertos de pó de arroz, vestia batina à francesa, sem capa e com um pequeno cabeção de finíssima lila, meias de seda, lustrosas e bordadas, sapatos de salto alto adornados por enormes fivelas de puro oiro. Usava uma larga e comprida faixa de seda preta que lhe cingia elegantemente a batina em volta da cintura, deixando nas suas extremidades pender duas grandes borlas. Na mão, levava sempre um chapéu de pêlo de castor e deixava, ao passar, um agradável perfume, que as damas, de vestidos amplos e volumosos, com corpetes justos que realçavam os seios, gostavam de, discretamente, inspirar. Era o rasto afrodisíaco que criava ciúmes nos cavalheiros e acendia clarões de volúpia nas donzelas, sempre disfarçados com manifestações de agradável surpresa por o encontrar. Havia competição na audácia de lhe beijar a mão e, em troca das saudações de boas-vindas, ouviam galanteios.

Percebia-se que a sua presença acendia nas damas e donzelas desejos secretos que já não disfarçavam. Mas o Abade de Jazente gostava de se fazer rogado. Sabia, melhor que ninguém, que a aparente reserva acicatava o poder de sedução daquelas damas. E exercê-lo era, para elas, uma paixão e para o Abade a volúpia de as possuir.

Descrevia essas sensações em versos, como estes:

“Vinde cá doces musas, que somente
Divertir-me convosco agora intento,
Pois neste solitário apartamento
Não é fácil sem vós viver contente”.

Ou, então, neste soneto à sua predileta Nize:

“Tu queres, Nize, oh quanto podes, quanto
Sobre o sacro poder da liberdade!
Tu queres, que a chorada falsidade
Se desdiga outra vez em novo canto.

Que o mundo torne a ouvir, com mudo espanto,
Chamar-te em vez de falsa, Divindade:
E em lugar de culpar-te a variedade,
Dizer que sempre foste o meu encanto.

Assim será, se ficas bem comigo:
A vergonha, o dever rompe, e atropela;
Que eu me sujeito a tudo por castigo.

Oh vós , que já me ouvistes sem cautela

Contra Nize gritar; eu me desdigo:
Se faço mal, não sei; só sei, que é bela.


(In: Abade de Jazente, Poesias. Imprensa Nacional Casa da Moeda).

Nos salões da aristocracia portuense a sua presença despertava sempre nas damas mais afoitas uma ávida impaciência de o conseguir no passo de minuete ou tê-lo a seu lado no jogo de cartas. E o Padre Paulino, astuciosamente, como quem não quer a coisa, fazia que lhe calhasse na dança ou nas cartas a mais bela e loura, que denotasse fresca idade e servida das rotundidades e curvas que, ao tempo, preenchiam o ideal de beleza do mais exigente amante. Era só esperar por vê-la caprichar trocar com ele um olhar lânguido e logo tinha por mercê um convite para dançar ou ficar a seu lado num jogo de cartas.


E tratando-se de um jogo de cartas, mal os primeiros lances se davam, logo os mais distraídos compreendiam a razão de tão escaldante capricho: o melhor do jogo desenvolvia-se escondido pela toalha de seda bordada que cobria a mesa. Só se denunciava, quando uma dama soltava um gritinho e todos os olhares, com sorrisos de uma ironia mal disfarçada, iam na direcção do Padre Paulino. Era certo que, debaixo da mesa, as suas pernas tinham ido longe de mais, enfiando as enormes fivelas do seu sapato nas meias de seda da dama e ferindo-a no jogo de pernas que alimentava aquela tempestade de volúpia. Não resistindo à dor, a dama, que de olhos lascivos, se tinha esquecia do jogo, abria repentinamente as pálpebras e de olhar arregalado soltava um inoportuno “ai!!!...” E um fingido alvoroço punha intervalo abrupto naquele escondido jogo de sensualidade de que era exímio o Abade de Jazente.

Esta era a vida social do Abade de Jazente. Quando lhe falavam das aparições, respondia que eram fantasias de crianças e que não deviam ser levadas a sério. Mas, lá no fundo de si mesmo, perturbava-o a gente que passava à sua porta de diferentes condições sociais, mulheres e homens, a pé ou a cavalo, peregrinando em direcção ao sopé da lapa do cabeço do Outeiro do Preiro, onde Nossa Senhora aparecera a 13 de maio de 1757 a três meninas, pedindo-lhes que “fizessem penitência dos pecados, com jejum a pão-e-água nas primeiras sextas-feiras e sábados e que recomendassem isso mesmo a todas as pessoas que encontrassem”.

Por vezes, mas só no princípio da semana, este apelo, de que ouvia falar, trazia-lhe à memória o Padre Malagrida, a sua fama de santo e sábio. Sabia que era uma das mais importantes figuras da Ordem dos Jesuítas, com um trabalho de muitos anos de missionário no Brasil, fundador dos colégios mais prestigiados nessa colónia do Reino; que fora escolhido para confessor de D. João V e do Marquês de Lorna. E sempre que Malagrida lhe vinha à mente, fazia-lhe recordar a profecia de Soror Maria Joana do Louriçal, religiosa que tomou o hábito do Convento do Santíssimo Sacramento do Louriçal, a 16 de Julho de 1732, e falecera um ano antes do Terramoto, em 1754. Falava-se que tinha assegurado ao Padre Malagrida que Jesus Cristo lhe aparecera com uma cruz, em sinal da necessidade de se fazer penitência pela vida depravada que levava o Reino, prenunciando que não havendo reparação desses pecados, abater-se-ia sobre Lisboa uma tragédia. Seria o castigo divino para que se percebesse que a dissolução dos costumes contrariava os ensinamentos dos Evangelhos. (in: Manuel Coelho Amado, “Breve relação da vida, morte prodigiosa da Madre Soror Maria Joana, nossa irmã que faleceu a 25 de Março do presente ano (1754)”.

Nesses momentos, Paulino Cabral sentia um aperto na alma, mas desviava logo o pensamento para as expectativas do fim-de-semana próximo nos convívios dos salões do palácio do biscainho Bartolomeu e para as tertúlias da Arcádia Portuense.

Nesse tempo, última metade do séc. XVIII, a vida da gente de S. João da Folhada não se passava em salões, como acontecia entre a nobreza e a alta burguesia da Cidade do Porto, mas no trabalho duro a arrancar da terra o que precisavam para matar a fome dos filhos e no desespero de quem vive sem horizontes de esperança.

A miséria e a fome juntavam-se ao pavor que sentiam de Sebastião José, dos esbirros dos familiares do Santo Ofício, do meirinho de S. Simão de Gouveia Ribatâmega e dos visitadores da paróquia. O vinho já não podia ser vendido a retalho e receavam que o mesmo acontecesse aos cereais e a outros produtos.


O horror com que foram castigados todos os que participaram no protesto dos tanoeiros convertia-se num imenso medo que lhes tolhia o raciocínio e os reduzia a uma insuperável impotência e, sempre que passavam junto à Quinta do Vinhal, lembravam-se de que o terramoto tinha provocado a queda da torre-solar que enobrecia a casa e imaginavam o montão de ruínas e de mortos em que Lisboa se tinha transformado.

Não encontravam palavras que explicasse tanto horror e isso fazia-os virar para dentro de si mesmos, onde pediam a Nossa Senhora que não os abandonasse e que afastasse das suas vidas o diabo que banalizava tanto mal.

O pânico incrustara-se na alma dos folhadenses com um edital que, entretanto, o Marquês de Pombal tinha feito publicar, pelo qual “manda inquirir sobre as pessoas que tiveram práticas de dizer mal do governo, dando 220 mil cruzados a quem os denunciasse.”

Era mais uma acha para incendiar o pavor que sentiam. E ele era tão grande que, quando iam à missa ou ao cemitério velar familiares sepultados, baixavam a cabeça e alongavam o passo só para não deixar que o olhar se fixasse naquela ordem que continuava fixada à porta do cemitério e da igreja. Não era por indiferença ou desprezo, mas porque os olhos ao caírem no edital parecia que lhes abria no coração uma ferida que os fazia sofrer por lhes abafar o que Nossa Senhora terá dito às três pastorinhas que, entretanto, já haviam sido levadas para a sua companhia. 

Até aquela altura, só os santuários e as ermidas eram os únicos lugares consagrados à devoção dos santos. As aparições de Nossa Senhora não tinham para o poder eclesial ou do reino qualquer relevância, com exceção do Marquês do  Pombal, mas não era isto que sentia a gente que vivia na região que ficava em torno de S. João da Folhada, como veremos no próximo capítulo.

01 de Maio de 2017

João Baptista Magalhães

segunda-feira, maio 01, 2017

 

Um mundo às avessas e premiar às avessas

Pensemos no exemplo que vem dos E.U. e de França! De quem será a culpa de o mundo andar às avessas e premiar às avessas? Despreza a honestidade, pune o trabalho, recompensa o oportunista, o chico-esperto, o corrupto e pune quem defende a solidariedade, luta pela justiça e quer a transparência..
Será que uma lanterna mágica faz, como sendo natural, ver o mundo de pernas para o ar, como Eduardo Galeano coloca nos pregões da lanterna Mágica?

“Que se alce a lanterna mágica!
Imagem e som! A ilusão da vida!
Em prol do comum estamos oferecendo!
Para ilustração do público presente
o bom exemplo das gerações vindouras!
Venham ver o rio que cospe fogo!
O Senhor Sol iluminando a noite!
A Senhora Lua em pleno dia!
As Senhoritas Estrelas expulsas do céu!
O bufão sentado no trono do rei!
O bafo de Lúcifer toldando o universo!
Os mortos passeando com um espelho na mão!
Bruxos! Saltimbancos!
Dragões e vampiros!
A varinha mágica que transforma
um menino numa moeda!
O mundo perdido num jogo de dados!
Não confundir com grosserias e imitações!
Deus bendiga quem vir!
Deus perdoe quem não!
Pessoas sensíveis e menores, abster-se”.

Pregões da lanterna mágica do século XVIII


This page is powered by Blogger. Isn't yours?