quarta-feira, março 22, 2017

 
Beato Gonçalo Dias II (cont.)



BEATO CONÇALO DIAS
Gonçalo Dias tinha 50 anos quando, no dia 16 de Outubro, entrou no Convento da Cidade de Lima, uma cidade colada à portuária de Callao. Recebeu o hábito de frade e entrou no noviciado. Um ano depois, fez a sua profissão de fé e logo foi nomeado para gerir a herdade que dava o sustento ao Convento. Isso deu-lhe a oportunidade para regressar às actividades que tinha desempenhado com os seus pais na casa do Barral, em S. João da Folhada. Pela competência que revelou, o Abade Superior chamou-o ao Convento e entregou-lhe as chaves do mesmo, como sinal de confiança, consideração e estima.
Note-se que, nesta altura, a corte espanhola ainda tentava limpar a imagem de crueldade que deixou Francisco Pizarro, quando, em 16 de Novembro de 1532, conquistou o Perú e fundou a Cidade de Callao, também chamada Cidade dos Reis. A história desta conquista está associada a  execuções, extorções e genocídios que destruiram tribos indígenas, como os Incas e os Astecas. A imagem do conquistador  que dominava pelas execuções e perfídias ficava associada à imagem de Espanha.

 PIZARRO E OS INDÍGENAS
Diz-se  que Pizarro sabia que os indígenas não jurariam sobre a Biblia e armadilhou um encontro: convidou o imperador Inca Atahualpa para uma reunião diplomática e, nessa altura, obrigou-o a jurar fidelidade sobre uma Bíblia. O imperador recusou e Pizarro ordenou a sua prisão e a execução dos homens que o acompanhavam. Depois, exigiu ouro e prata para o libertar. Após receber o metal precioso que, segundo descrição da época,  encheu uma sala e um quarto, mandou executar Atahualpa. E numa outra cidade, a de Cajamarca, às suas ordens 168 soldados espanhóis, bem armados, executaram mais de sete mil indígenas.


FRANCISCO PIZARRO
O próprio Pizarro acabou por morrer com os mesmos ferros com que executava os indígenas. A sua gente revoltou-se contra ele e, em 1541, foi assassinado.

Para além deste ambiente de crueldade, os espanhóis eram acusados de responsabilidade pela pobreza extrema em que ficaram a viver os povos do Peru.

Naturalmente, os indígenas ainda sentiam essa herança e olhavam para os espanhóis como inimigos perigosos e cruéis. Mas Gonçalo Dias depressa conseguiu ultrapassar todas as hostilidades que, de início, sentiu e foi surgindo aos olhos dos habitantes da Cidade dos Reis como um santo. Dedicava a sua vida aos que mais sofriam, fossem mendigos ou doentes, brancos, negros ou mestiços. A todos, em nome de Deus, ajudava e, junto de Deus, por todos intercedia. A sua fama de bondade e santidade cresceu e o seu passado de marinheiro virtuoso foi juntar-se à sua fama de santidade. Pouco a pouco, conseguiu usufruir muito prestígio e estima junto de todos os que habitavam aquela portuária Cidade dos Reis, que tão mal havia sido tratada pelos colonizadores.

Numa das ocasiões em que estava de porteiro do Convento, ouviu alguém a saudá-lo em português; logo, estabeleceu com ele conversa. Soube, então, que o seu conterrâneo, que se apresentou como António Correia, estava ali, porque tinha conseguido fugir de Portugal. Era natural de Celorico da Beira e os seus pais eram judeus. Depois de D. Manuel, em 1497, trocar a mão da princesa D. Isabel pela instauração da Inquisição e perseguição aos judeus foragidos de Castela, a maioria dos seus antepassados foram desterrados, obrigados a entregar os seus filhos ao Rei, que os mandava submeter à água do baptismo que, segundo a Inquisição, era o leite da mãe igreja para os purificar das heresias.

 GALEÃO
António Correia por conselho de seu Pai, “convertera-se” ao cristianismo, mas, mesmo assim, foi sabendo que por Lisboa, Évora e Coimbra os convertidos, cristãos-novos, eram suspeitos de continuarem a praticar o judaísmo. Depois de presos, sofriam horríveis torturas, tinham os seus bens confiscados e acabavam, quase sempre, por ser condenados à morte pelo fogo. O espectro do desterro apavorava-o, mas ainda mais o aterrorizava o receio de ser denunciado como praticante do judaísmo na clandestinidade pelos familiares do Santo Ofício. De início, pensou em fugir numa das caravelas que iam para o Brasil, mas receou que nas terras de Santa Cruz fosse apanhado pelos esbirros da Inquisição. Sabendo que no Peru não havia o Tribunal do Santo Ofício, decidiu caminhar em direcção a Espanha para aí comprar uma passagem como marinheiro de um galeão que fosse para o Peru. Foi isso que aconteceu e as amarguras que passou na viagem foram muito semelhantes às que tinha sofrido Gonçalo Dias. 
 INQUISIÇÃO

Convidado a entrar no Convento, a conversa entre conterrâneos foi longa. António Correia sentiu-se acolhido sem suspeitas. Gonçalo Dias considerava que a perseguição aos judeus teve origem num mal-entendido dos primeiros tempos do cristianismo: nessa altura, os judeus foram acusados de se considerarem acima dos cristãos, mas esse erro foi logo combatido, ao ser afirmado por Jesus que a caridade fraterna era a única lei da relação entre os humanos. À luz dos ensinamentos do Evangelho não se deveria insistir numa divisão de raças e muito menos perseguir os judeus com a pena de fogo, contrária à bondade dos ensinamentos de Deus. No seu entender, Cristo morreu numa cruz para chamar toda a humanidade ao entendimento fraterno, sem diferenças de cor ou de sangue.

O apoio e testemunho de vida que Frei Gonçalo Dias lhe dedicou, tocou-o e António Correia quis receber o hábito de mercedário. Tomou o nome de Frei António de S. Pedro e, estimulado pelas virtudes do seu patrono, acabou por também angariar fama de santo.
Se vivesse em Portugal e não tivesse encontrado Gonçalo Dias, certamente, por ser de família judia, nunca teria desenvolvido as virtudes do cristianismo, que lhe foram reconhecidas.
Só este facto já nos ajuda a compreender por que Gonçalo Dias merece o reconhecimento dos folhadenses e ser uma referência da história do nosso Concelho.
Nos seus últimos tempos da sua vida já só desempenhava as funções de sacristão do Convento e poucas vezes era visto a cirandar no bulício de Callao.
Em 24 de Janeiro de 1618, Gonçalo Dias faleceu cansado da idade. A sua fama de santo já, nessa altura, se estendia a Portugal. Nesse mesmo ano, no dia 4 de Maio, o seu processo de beatificação foi aberto pelo arcebispo de Lima, D. Bartolomeu Lobo e Guerreiro e o seu corpo foi exumado. Segundo o seu biógrafo, todos os que presenciaram o acto não se cansaram em publicitar a incorruptibilidade do cadáver e o perfume que do mesmo se desprendia.
Foram recolhidos testemunhos das suas virtudes e milagres. Vieram emissários da Santa Sé e da Ordem dos Mercedários a S. João da Folhada para se inteirarem do seu passado e do passado da sua família, tal como nos relata o abade José Franco Bravo nas inquirições do Marquês do Pombal. Diz: “O milagroso Sam Gonçallo Dias nasceu entre as asperezas destas serras, como roza dentre os espinhos, em o lugar de Barral, de pais humildes, em o ano de mil e quinhentos e cincoenta e seis e florescendo com muntos actos de virtude e evidentes sinnaes da sua santidade. Foi celebrado o seu Gloriozo transito (falecimento) em o Porto de Callas, na cidade de Lima, em as Indias Orientaes de Espanha, no convento e hábito de Nossa Senhora das Mercês, da Redempção de Cativos, em o dia vinte e sete de janeiro do ano mil e seiscentos e dezoito. Depois foi beatificado pelo Santissimo Padre Benedicto XIII” (in: Memórias Paroquiais, pag 372)
No Lugar do Barral foi colocado um cruzeiro, que ainda hoje existe, para, segundo as referidas Inquirições, indicar “onde foram em outro tempo as cazas donde nasceo o venerável Sam Gonçalo Dias, as quoaes foram demolidas pelo padre Frei Joam Sanches de Lhanos, comendador de Monte Rei, que veio a esta freguesia por ordem e comissão do generalíssimo da mesma ordem frei Sebastiam de Velasco, o quoal padre assim adicto juncto com o abbade que antam era Melchior de Azevedo e mais povo desta freguesia demolio as ditas cazas por as acharem servindo de coraes de gado”. E para se dar veneração in perpectum às ditas cazas, em este Cruzeiro e sitio naqueles anos que foi pelos de mil e seiscentos e setenta e sete em diante, houve muita ocorrência de gente e muitos e variados milagres.”  (in: Memórias paroquiais, pag 373)
IMPÉRIOS COLONIAIS PORTUGUÊS E ESPANHOL
Como se vê, a devoção a S. Gonçalo Dias atraía, na altura, àquele lugar muita gente, mas como não ficava bem terem feito da casa onde nasceu uma corte de animais, preferiram derrubá-la e da memória da vida do Santo só ficou um Cruzeiro.

Aparentemente, tal decisão parece estranha: para além da velha casa se harmonizar com a simplicidade e pobreza da vida de S. Gonçalo Dias, a sua demolição desvalorizou o que constituía o ideal de santidade enaltecido no tempo e que inspirou, por exemplo, a criação das ordens mendicantes, que, na época, viviam de esmolas, numa pobreza radical e numa humildade extrema.
Pergunta-se, então, que argumentos terão sido invocados para a destruição da casa onde habitou Gonçalo Dias? E, já agora, por que será que, sendo S. Gonçalo Dias venerado em toda a América Latina, considerado o pai dos pobres de Porto Callao (cidade do Peru), só dele conheçamos o que dele diz o Abade da Folhada nas Inquirições do Marquês de Pombal, o Cruzeiro que sinaliza a casa onde nasceu e as referências que dele faz no “Mensageiro de Santo António”, em Maio de 2002, o padre Arlindo Magalhães, professor da Universidade Católica? Mesmo a imagem que existe de S. Gonçalo Dias na igreja da Folhada não foi ali colocada pelos seus conterrâneos, mas, como já referimos, pelos padres da Ordem a que pertenceu.
Muitas são as razões, mas só contextualizando podemos alinhar respostas. Em 1517, Martin Lutero publicou as 95 teses que, entre outras doutrinas, contestava o culto dos santos, que para ele era um sinal de paganismo, o poder e o comércio das indulgências. Foi excomungado e isso provocou um cisma na Igreja Católica, originando o protestantismo.
Aos olhos de muitos cristãos o empreendimento colonizador (a que chamavam descobertas) dos Estados Católicos, como Espanha e Portugal, feito com a Cruz de Cristo e a espada, nada tinha a ver com os valores cristãos, mas com a cobiça do ouro e da prata e, quase sempre, de forma sanguinária.
 CONCÍLIO DE TRENTO
Naturalmente, estas criticas abalavam a credibilidade da Igreja, o que obrigou  á convocação do Concílio de Trento (1545-1563). Dessa demorada reflexão saiu a necessidade de  maior rigor por parte da Santa Sé no reconhecimento da santidade. Os bispos locais passaram a ser impedidos de canonizar e esta atribuição tornou-se num dos poderes do Papa. E só o podia fazer, depois de inquéritos rigorosos, audição de testemunhas credíveis, registo dos milagres num livro próprio, o “Liber Miraculorum”, onde também deveria constar a biografia da personalidade em causa e a avaliação das suas virtudes  por uma comissão de sábios escolhida pela Santa Sé.
Sabe-se que entre 1676 e 1680 intercederam pela beatificação do nosso Servo de Deus o Rei de Espanha, o Vice-rei de Nápoles, os bispos de toda a Espanha e três universidades (Valladolid, Salamanca e Complutense), para além de uma autêntica avalanche de cartas que do Peru foram enviadas ao Sumo Pontífice, testemunhando as virtudes de Gonçalo Dias, descrevendo os seus milagres, e pedindo a sua santificação.
Em 1687, a diocese de Lima procedeu a novas inquirições, ouvindo 71 testemunhas, para convencer o Papa a decidir-se pela beatificação do nosso Conterrâneo, o que só veio a acontecer muito mais tarde, por volta de 1731, quando foi dado por concluído todo o processo.
Uma questão fica, entretanto, por responder: Por que será que aqui, bem perto da Folhada, na cidade de Amarante, com uma história de vida muito semelhante à do venerável Gonçalo Dias, ninguém desconhece um outro venerável, nascido cerca de três séculos antes, também de nome Gonçalo, mas filho de uma família nobre, (viria a ser seu parente o Condestável D. Nuno Álvares Pereira),  honrando-o com grandiosas festas e com uma devoção que arrasta multidões de fiéis?
Ambos foram beatificados, mas um é de família nobre e o outro de família pobre. Muitas hipóteses podem ser colocadas para explicar o esquecimento de Gonçalo Dias, que nem na toponímia da sua freguesia natal ou do Concelho consta o seu nome. 
Será que os cristãos de hoje ainda continuam com o preconceito da Idade Média, de que só os nobres abraçam as virtudes da defesa da fé, da coragem e da abnegação?
Na verdade, Gonçalo Dias exerceu a mais modesta de todas as actividades: a de pastor na Serra da Aboboreira e de embarcadiço. Será que o pobre, para além de ter a cruel sorte do desamparo, carregar na palavra uma construção simbólica depreciativa para as classes mais favorecidas (é a pessoa que não se sabe cuidar nem portar-se), continuará a nem sequer poder ser santo?
Mas, se é assim, por que enchem a boca com os pobres para colher esmolas, esperar votos e mostrarem-se piedosos?
No próximo post falaremos sobre as aparições de Nossa Senhora no dia13 de maio de 1757, na terra de Gonçalo Dias, em S. João da Folhada.
 João Baptista Magalhães

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